domingo, 17 de fevereiro de 2008

História de Professor - Uma reflexão

Sujeitinho detestável aquele tal de Bertoldo...
Desde o primeiro dia de aula, lá estava ele recostado no muro da velha escola, olhando fixo para mim, um jeito petulante, superior.
Era o meu primeiro ano como titular no cargo.
Naquele bloco de alunos problemáticos, o Bertoldo veio junto.
Magrinho, macilento, possuía uma enorme cicatriz que começava no canto do olho esquerdo e descia até o meio da cara. Por conta disso, ganhou uma expressão de deboche na fisionomia.
Ele não perdia uma aula. Dia após dia encontrava uma maneira nova de me provocar, gritando, assobiando, caindo da cadeira, tendo acessos de riso.
Meus livros eram constantemente escondidos por Bertoldo.
Apareciam sempre dias depois nos lugares mais estranhos.
Eu me desesperava, ora castigando, ora falando manso com aquele rapazinho horrível que colocava em risco minha vocação.
Filho de pai presidiário e mãe alcoólatra, Bertoldo rejeitava a família. Dizia-se órfão.
Quanto a mim, contava cada dia que passava, para que o ano logo terminasse e eu pudesse deixar aquela escola.
Certa tarde, ao ver meu velho carro riscado, chorei as lágrimas que vinha guardando há muito tempo. Bertoldo me olhava de longe. Seria tão cruel assim?
No final de Novembro, meu jovem inimigo desapareceu. Sumiu das aulas. Estranho... e gostei.
Alguém comentou que Bertoldo estava seriamente doente.
Procurei não pensar nele. Afinal estava trabalhando em paz.
Volta e meia, durante as aulas, eu batia os olhos na cadeira vazia no fundo da classe.
Por que Bertoldo não retornava? Teria alguém cuidando dele se não estivesse bem de saúde?
Já era Dezembro quando resolvi dar uma passadinha em sua casa.
A própria mãe me recebeu, dizendo frases meio sem sentido.
Por cima do ombro dela enxerguei o Bertoldo deitado, observando a cena. Seu rosto trazia agora apenas a marca do desamparo. Entendi que estava morrendo.
— É leucemia, fungou a mulher.
Caminhei até o garoto e tomei seus dedos finos em minhas mãos. Ele sorriu e sussurrou no meu ouvido:
— Professora, eu não toquei no seu carro. A senhora... é minha melhor amiga. Não me deixe sozinho.
Não consegui dizer uma palavra. Eu tinha muito o que aprender em minha vida de professora.
Após a morte de Bertoldo, ainda permaneci naquela escola por mais seis anos. Talvez amor e admiração vestissem roupagens tão variadas a ponto de me confundirem. Sentimentos... quem sou eu para entendê-los?


Fonte: Revista Cláudia, maio de 1998. Profª Waldizia Moniz, Escola Estadual Maria Rosa Barbosa – São Bernardo do Campo – SP.

UMA HORA SEM CELULAR

Proponho um desafio difícil: fique uma hora sem celular. Usuários do aparelhinho que os deixa ligados o tempo todo não estão prontos para tal sacrifício. Não vão querer desconectar-se, mesmo que seja por um período de apenas sessenta minutos. Exagero? Não. Muitos dos meus alunos são incapazes de tal gesto durante as aulas. Essa incapacidade vem sendo observada em cinemas, teatros, elevadores e até igrejas.
Dia quatro último, em sua coluna na Folha, Ruy Castro nota que dentro de um mês teremos um celular para cada dois habitantes da Terra. Ao dar tal notícia, Castro revela certo otimismo ao observar que "de cada duas pessoas no planeta, restará uma que não sente ânsias de comunicação o tempo todo, não aceita ficar disponível 24 horas por dia, e não corre o risco de constranger os artistas deixando seu aparelho tocar no meio da platéia do Teatro Municipal". Mais à frente, o autor confessa que tal otimismo não está bem fundamentado, pois, logo após o empate entre os com e os sem celular, os primeiros começarão a ser maioria, uma vez que o ingresso de celulares no mercado continuará a crescer.
A ânsia comunicativa dos usuários de celular é um fenômeno relativamente novo. Há uns vinte anos ninguém sentia falta de uma ligação contínua. Hoje muita gente sequer pensa em separar-se do aparelhinho por alguns instantes. O novo hábito é objeto de muitas histórias folclóricas. Mas a ênfase em episódios engraçados ou ridículos acaba escondendo o principal: os usos do celular em nossa sociedade desqualificaram muitas outras formas de comunicação humana. Isso tem implicações éticas e educacionais importantes. Quando dão preferência a uma chamada no celular durante um papo num café, amigos nossos reclassificam as relações de amizade.
Não vou examinar situações em que a prioridade concedida a chamadas do celular sinaliza mudanças de significado em encontros humanos. Para encerrar, vou apenas revelar algumas das situações que me deixam irritado por serem extremamente mal educadas:
Atender ao celular, num elevador cheio de gente, e conversar livremente com o parceiro ou a parceira sobre a "ficada" de ontem.
Falar baixinho ao celular durante uma aula, possivelmente achando que os sussurros comunicativos não vão perturbar professor e colegas.
Colocar o aparelhinho ligado em lugar de destaque sobre a mesa onde será servido o jantar num restaurante bem transado.
Usar o aparelhinho durante caminhada num parque nas primeiras horas da manhã.